Parte 1
“Melhor do que um chefe só o próximo”. A placa de bronze na lápide de Meliante encerrava um ciclo, mas não extinguia uma raça. O elo perdido entre o réptil e o mamífero que Charles Darwin esqueceu de catalogar.
Meliante ganhou o apelido, que mais tarde virou nome registrado em cartório quando a partir dos 11 anos passou a delatar colegas no colégio em troca de notas maiores. Não satisfeito, era coroinha na instituição católica fundamentalista ligada a TFP, Tradição, Família e Propriedade, uma espécie de Ku Klux Klan tropical.
O maior desejo de Meliante era ganhar um troféu de Literatura, banhado em ouro, que repousava na mesa do padre diretor. Mas, admitia para si mesmo, não sabia escrever direito e a única maneira de conquistar aquele troféu seria, mais uma vez, acionar a sua patifaria endêmica.
Meliante era sonso. Não conhecia a palavra, mas a sensação. Seu jogo duplo conciliava a função de gandula do time de futebol dos colegas, tarefa que exercia com mentirosa servidão, com a de delator.
Gostava tanto de detalar que seu primeiro orgasmo aconteceu enquanto contava para o diretor do colégio como havia flagrado um grupo de colegas bebendo o vinho da missa das sete atrás de um barracão de obra. Ele disse “estavam Fulano, Beltrano com um copo de geléia...Si...crano...com uma re...re...re...vista..” e veio a onda de orgasmo que só não foi maior do que a que ocorreu no dia em que conseguiu roubar do quadro de avisos a circular com os nomes dos alunos expulsos graças a sua delação.
Mas, faltava o troféu. Meliante nasceu num bairro de classe média baixa da periferia e aos oito anos viu um vizinho atirar num garrafeiro aos gritos de “toma, seu meliante safado! Toma!”. Foram três tiros na cabeça. Motivo: o garrafeiro discutia uma dívida e teria dito “você pode ter deixado Tramóia das Trevas, mas Tramóia das Trevas não deixou você.” Tramóia das Trevas era uma cidade que, diz a lenda, existiu em Minas Gerais.
Todo mundo correu para acudir o pobre garrafeiro, menos Meliante que voou para o dicionário. Meliante queria saber o que significava meliante. Descobriu, eufórico. Aos 10 anos constatou que era um meliante autêntico. Chantageou um primo forçando-o a chamá-lo de Meliante numa festa. O primo chamou, apanhou muito dos pais por isso, mas o apelido vingou. Vida a fora.
Mas faltava o troféu. “Falta o troféu!”. “Falta o troféu!”. Os gritos de “falta o troféu!” despertaram Meliante no meio da noite. Estava suado. Acendeu a luz, o poster de Hitler continuava na parede. Um poster que ele obrigou, sob tortura, um colega a manipular no photoshop. Meliante aparecia ao lado do ditador, com a mesma roupa, o mesmo gestual, a mesma patologia. Mas faltava o troféu.
No dia seguinte acordou disposto a ganhar aquele troféu. Bem cedo, foi no pequeno canil adaptado perto da garagem do ônibus do colégio. Lá estava o chimpanzé de Padre Ângelo, melhor amigo de Meliante. O símio não confiava nele e todas as vezes que se aproximava da jaula o macaco sacudia a grade e gritava. Chamava-se Anselmo em homenagem ao cabo da Marinha.
Anos antes, Meliante já lera:
“Após o golpe de 64, Anselmo foi expulso da Marinha pelo crime de motim e revolta. Chegou a ser preso, mas fugiu e exilou-se no Uruguai e depois em Cuba, onde teria feito treinamento de guerrilha. Voltou ao Brasil em 1970 e ligou-se como membro atuante no movimento guerrilheiro. Acabou preso pelo delegado Sérgio Paranhos Fleury, do Dops.
“Logo após da sua prisão, Anselmo aceitou trabalhar para o Governo Militar, infiltrando-se em grupos de esquerda e movimentos sindicalistas. Porém, existem fortes suspeitas de que antes de 1964, Anselmo já era um agente infiltrado nesses movimentos e sua função era fornecer informações para os órgãos de repressão do governo. Esses dados foram confirmados pelo policial Cecil Borer, ex-diretor do Dops do Rio de Janeiro. Cecil afirma que Cabo
Anselmo já possuía treinamento específico para trabalhos de infiltração antes do golpe militar. Por outro lado, supostos documentos do DEOPS-SP registram Anselmo como agente apenas a partir de 1971, após sua prisão.
“Durante sua atuação como agente, Anselmo levantou com sucesso uma grande quantidade de dados sobre os movimentos dos guerrilheiros brasileiros, resultando na prisão, morte e tortura de vários de seus integrantes. Dentre eles, estava a própria namorada de Anselmo, a bela Soledad Barrett Viedma, que estava grávida de 4 meses . Mesmo assim, Anselmo a entregou para o delegado Sérgio Paranhos Fleury. Soledad não resistiu as torturas e morreu.
“Após sua função de agente infiltrado ser descoberta pelos guerrilheiros, Anselmo desapareceu entre 1972 e 1973, época que foi dado como morto, ou pelas forças de segurança do Governo Militar ou pelos guerrilheiros.
“A dúvida desapareceu a partir do momento em que o Cabo Anselmo foi entrevistado pelo jornalista Octavio Ribeiro, com sua publicação pela Revista Isto É, na edição de 28 de março de 1984.
“ No início dos anos 80, Cabo Anselmo ainda transitava livremente pelo Dops e tinha ligações com o delegado Josecyr Cuoco, com quem mantinha uma agência privada de informações que, com agentes infiltrados no movimento sindical e acesso aos relatórios do Dops, vendia informações para clientes privados e empresas, especialmente do setor automobilístico, na época muito assustadas com o novo sindicalismo que nascia no ABC.
“Hoje, o ex-marinheiro reivindica ainda uma aposentadoria condizente com o posto que ocuparia na Marinha, que seria o de subtenente aposentado. O argumento de Anselmo é que a indenização da Comissão de Anistia não deve beneficiar apenas os militantes de esquerda. Ele alega que todos que foram de alguma forma prejudicados ou cassados em seus postos em razão do golpe militar deveriam ser beneficiados.”
A biografia do cabo era projetada como um filme saudoso nos vasos e artérias de Meliante, mas justiçar era preciso. Naquela madrugada, a banana com mel e chumbinho silenciou o chimpanzé. Para sempre. Mais: Meliante, de luvas, entrou no canil adaptado e degolou o símio com uma foice. Mais: escalpelou levemente o mamífero. Mais: levou pedaços de pele nos bolsos.
Voltou para casa, tomou banho e se tivesse barba teria feito. Vestiu o uniforme e rumou para o colégio. Total comoção. Polícia, legistas, veterinários. Meliante passou cristal japonês nos olhos e se atirou aos pés de Padre Ângelo balbuciando “quanta covardia...quanta covardia”. Sabia que padre Angelo seria o próximo diretor graças a sua íntima relação com o Arcebispo e com militares da reserva e civis que torturaram muitos brasileiros durante a ditadura de Costa e Silva e Médici.
Em vez de revistaspornôs, Meliante usava fotos de Costa e Silva, Médici e do facínora delegado Sergio Fleury para se masturbar. Achava que tinha nascido em época errada. Queria servir aquela ditadura que não existia mais. Por isso, tornara-se cúmplice de um uruguaio que dava aulas de História no colégio e que teria sido um agente da temida Operação Condor, outra paixão de Meliante que ficou 18 horas seguidas lendo sobre o assunto em sites indicados pelo Google. Ah, como ele queria participar daquele espetáculo sul-americano.
O colégio abrigou o uruguaio, codinome “Professor G”. Ele teria ajudado aqueles padres radicais a se livrarem de dois pais de alunos ligados a Dom Helder Câmara, odiado por seu hálito liberal e democrata.
Mas, estamos no enterro do chimpanzé. Todos foram sepultar o símio perto dali, num cemitério de cachorros. Como Meliante previra, padre Ângelo não quis ir. Como Meliante previra, padre Ângelo ficaria em sua clausura...bebendo “Fogo Paulista”. Era alcoólatra, mas só Meliante sabia. E como Meliante previra, não foi difícil seduzi-lo. Tomado pelo álcool, pela morte de Anselmo e provavelmente sem saber o que estava fazendo, Padre Ângelo caiu na cilada e sodomizou Meliante. Em seguida tombou na compacta cama de solteiro, cansado, bêbado. Meliante tinha posicionado sua câmera que gravou tudo.
No final do dia, mais duas previsões se confirmaram: o troféu era seu graças a uma trêmula carta-súplica de Padre Ângelo ao diretor; o mesmo padre Ângelo se enforcou no quarto, sem deixar bilhete. Só Meliante sabia o motivo que pairava muito além do jardim onde sepultaram o chimpanzé.
Parte 2
No dia de seu 25º. aniversário, Meliante foi comemorar com uma família que alugara num classificado de jornal. A esposa (detestava que a chamassem de “sua mulher”) era um transexual de programa que ele mandou o síndico do seu prédio arregimentar nos classificados de jornais. Os dois filhos adolescentes, Meliante tirou ainda bebês de um desafeto, na base do que mais sabia fazer: chantagem.
A falta de talento o incomodava. Muito. Meliante era vaidoso e mantinha em casa, uma cobertura tríplex nos Jardins, São Paulo, uma gigantesca biblioteca. Mas, dos livros, só as capas. Não havia miolo. Para Meliante conteúdo era detalhe. Na faculdade, mediante negociatas com colegas e professores do tipo “você fuma maconha à vontade que eu não conto aos meus amigos delegados desde que...”. E o “desde que” eram provas feitas por terceiros, além de trabalhos, teses, defesas orais. Meliante exigia: “se fizerem serviço porco e eu tirar menos de 9, jogo no calabouço”. Sua vaidade foi aos píncaros quando foi homenageado no final do curso como aluno número um. Palco, luzes, microfones. O habitat natural de Meliante. Sua falsa família, claro, sentada na primeira fila.
Rico? Sim, Meliante estava muito rico. Achacando, dedurando, coagindo e, sobretudo, babando ovos dos poderosos ganhou seu primeiro milhão de reais num mês de julho. Foi comemorar com dois falsos amigos num restaurante quase popular do centro de São Paulo. Lá, brindaram ao milhão.
Além das manobras escusas, Meliante obteve uma espécie de bolsa “cala boca” do colégio onde estudou. Graças a módicos e vitalícios 200 mil reais por mês não enviaria para os jornais o dossiê que montara, ao longo de anos, denunciando todas as falcatruas financeiras, pedofilia e até tráfico de drogas que a cúpula do colégio praticava.
Um dia, singrando a avenida Paulista com seu Mini Cooper zero km, a caminho de casa nos Jardins, Meliante suspirou e pensou “é, estou com o boi na sombra”. E estava. Apesar da falta de talento, se meteu em política. Achou por bem não se filiar a nenhum partido para que suas traições ganhassem mais, digamos, dinâmica. Traindo aqui, ali, usando seus métodos tradicionais acabou se tornando destaque em um grande partido, apesar de não ser filiado.
Ao mesmo tempo vendia informações sigilosas do partido para outros, especialmente quando essas informações revelavam escândalos sexuais, financeiros e afins. Meliante adorava um escândalo. A cúpula do “seu” partido o endeusava. Meliante lambia botas, sapatos, sandálias, estava sempre a disposição para qualquer missão (especialmente as espúrias), era o primeiro a chegar nas reuniões e sempre o último a sair. Seja em São Paulo, Minas, Rio ou Brasília.
Seu pai, comunista histórico, sabia o filho que tinha mas temia romper relações. Meliante fingia sentir saudade, o pai simulava o mesmo. Mas, numa noite de Ano Novo, Meliante, a esposa, os filhos, que decidiram passar juntos o Reveillon, o pai de Meliante se excedeu na bebida e começou a dizer algumas verdades. Meliante, sorriso sonso sempre a postos, cochichou no ouvido do pai: “Tudo, menos verdades, tá bom?”. Dois dias depois, o velho comunista jazia morto na piscina.
Sua mãe? Um dogma para Meliante que só o pai conhecia. Ele foi parido na margem do rio Paraíba do Sul e jogado ali mesmo. Foi encontrado por um grupo de escoteiros que foi ao Juizado que acabou localizando o pai. Da mãe não se tem notícias, até hoje.
O patrimônio de Meliante bateu a cifra de um bilhão de reais quando ele fez 31 anos. Resultado de sua escroque movimentação de informações que envolvia até dois presidentes sul-americanos, que, sonso, tratava de “meus caros amigos”. E tudo ia muito bem. A vida de Meliante ia de vento em popa.
Um dia, ele pegou seu jatinho e decolou sem rumo. Ao piloto disse apenas “vá pro Nordeste, meu querido”. Mandou que descessem numa cidade do interior da Bahia. Meliante, sorriso sonso, mandou a tripulação aguardar. Pegou um táxi. “Meu querido, me leve a um parque de diversões”. O parque, mambembe, pobre, ficava a 10 minutos do pequeno aeroporto. Meliante pagou, “obrigado meu querido” comprou algodão doce e sentou na roda gigante. Quando sua cadeira atingiu o ápice, Meliante se jogou. Morte instantânea.
O médico-legista teve vontade de escrever “morte por overdose de si mesmo”, mas não há respaldo científico para isso. No velório, um mar de falsidades. Todos os amigos-vítimas passaram por lá, mas só acreditaram que Meliante estava realmente morto quando o corpo desceu e a esposa, herdeira trilhardária, fingindo choro, beijou a placa-lápide:
“Melhor do que um chefe só o próximo” e intimamente sorriu.