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Renato Russo, o trovador solitário segundo a nobreza existencial de Arthur Dapieve

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  Arthur Dapieve
O que era uma conjectura tornou-se, para mim, uma verdade quase absoluta: Renato Russo morreu de Aids, mas em decorrência direta da solidão, aguda solidão, que o torturou no início, meio e fim de sua fulminante trajetória por este planeta. Graças a um livro extraordinário chamado “O Trovador Solitário”, escrito pelo colega Arthur Dapieve, tive acesso a vida, a obra, ao caos afetivo de um dos maiores artistas contemporâneos brasileiros, que teve a sua biografia escrita sob o signo da nobreza existencial rara do Dapieve, um grande jornalista, escritor, um grande sujeito.

“O Trovador Solitário” foi lançado no ano 2000, já ganhou várias edições e a que o Dapieve me presenteou, autografada, é a mais atual. Esperava um livro dark, já que a biografia do Renato (pelo menos ao pouco que eu tive acesso) que nos foi passada é dura, seca, cheia de contornos mórbidos, mas o autor conseguiu estabelecer vários pontos de equilíbrio na lamentavelmente curtíssima linha do tempo do Renato.

Fui apresentado a ele formalmente nos tempos de Rádio Fluminense FM. Troquei meia dúzia de palavras com aquele cara sério, muito sério, roupas simples e que não conversava com qualquer um. Amigos meus que conviveram com ele também o descrevem como um homem sério, triste, olhar muito atento, de poucas palavras. Daí o valor deste livro, já que o autor é a pessoa que conheço que mais se aproximou da vida real de Renato Russo.

Arthur Dapieve em nenhum momento bota panos quentes em “O Trovador Solitário”, mas o tempo todo mantém conectada a relação causa/efeito mantendo vivo o diálogo caos-Cosmos em todas as páginas do livro, passando para o leitor a certeza de que nada foi à toa na vida do criador e líder da Legião Urbana. Nada. Foi tudo caos. Foi tudo Cosmos. Foi tudo.

O livro revela, por exemplo, que a disciplina do Renato com o trabalho era radicalmente cartesiana, alemã, um perfeccionismo muitas vezes atroz. Quando ele inseriu o verso “Disciplina é liberdade”, na canção “Há Tempos”, falava de si, de seu cotidiano. O Renato que eu imaginava meio bicho solto, chegado a um improviso, simplesmente não existiu. Dapieve fala de ensaios diários de horas e mais horas de duração até que tudo ficasse como Renato exigia. Mais: ele chegava e todos os músicos (em especial os músicos convidados) tinham que ter todas as canções perfeitamente prontas para o ensaio. Uma nota fora e Renato caia de esporro.

O Renato que virava noites ao telefone com os amigos, falando de música, de discos, de livros, de angústia, de depressão, amores não correspondidos convivia com o marechal dos estúdios. Era o Renato só, completamente só, que escancarava essa solidão publicamente e cujo dia a dia chegou a mostrar em algumas canções. “Feche a porta do seu quarto/Porque se toca o telefone/Pode ser alguém/Com quem você quer falar/ Por horas e horas e horas (“Eu Sei”).

O trovador solitário soube que estava com Aids no Natal de 1990, quando internado numa clínica em Botafogo, Rio, onde decidiu fazer uma desintoxicação. Uma atitude espontânea. Lá, recebeu o resultado que estava com a doença. Lá decidiu não comentar com ninguém, fora os amigos da Legião, Dado Villa-Lobos e Marcelo Bonfá a amiga Denise Bandeira, e outros pouquíssimos. Na clínica mesmo tomou uma série de decisões, principalmente profissionais e se empenhou mais ainda na Legião e deslanchou em sua carreira-solo.

Ao longo dos seus seis últimos anos de vida, Renato Russo compôs como nunca, gravou como nunca, comprou discos (especialmente de música clássica) como nunca, se drogou e bebeu como nunca. Nas crises de desespero, solitário em casa, recorria ao telefone para falar com amigos. Tempos depois, parou com o álcool e as drogas, teve recaídas, mas o trabalho com certeza prolongou sua existência.

A viagem à Itália com a querida amiga (dele e minha) Gilda Mattoso, assessora de imprensa de Renato e da Legião. Ele pediu que ela o levasse a Itália para conhecer suas origens (família Manfredini), num tour que durou oito dias, e também para pesquisas sobre música italiana, repertório de seu álbum “Equilíbrio Distante”

Depois...bom o Renato Russo não teve depois. Ainda assim, Arthur Dapieve, muito humano, preserva o seu biografado do dramalhão, do coitadismo e empresta a ele dignidade, força, muita hombridade. Por isso, acho “O Trovador Solitário” leitura obrigatório para quem se interessa por vida.



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