Mont Serrat, ilha-berçário de "Water of Love", que era regida por George Martin, mas um furacão ia passando e levou. Não restou nada, especialmente o Air Studios de Martin.
Restaram pergaminhos dos anos 80, escritos pelo Police, Dire Straits e até The Clash.
Ouço "Water of Love" sem parar, tarando.
Eu taro
Tu taras
Ela tara
Tu taras
Ela tara
Desço os Jardins, São Paulo capital, domingo de sol. Crianças, bola de futebol, "Water of Love" numa loja de discos.
Ibirapuera, parque popular, ponho a pipa no alto, tiro a camisa, cheiro de churrasco. Chafarizes despejam "Water of Love" para cima. Vejo rostos. Na pipa. Ho Chi Mihn, Mao Tsé Tung, Demi Moore. Flutuam. Lúdicas, crianças olhando, bocas arreganhadas.
Chamam pipa de papagaio e meu suor de suor. Frustro, mas canto o refrão "yes, I need a little water of love".
Subo a Rua Augusta a três quilômetros por hora.
Itaim Bibi escrito no trolley bus, que se arrasta ao som do rádio. Ouço "Water of Love", camisa encharcada, carrapicho nas botas.
São Paulo, meu repouso. São Paulo, meu sossego. Hélices não param de bater. Máquinas de sucos, helicópteros que toureiam antenas parabólicas.
Um Boeing passa rasante. Arrasta meus sonhos para Niterói, Estado do Rio. Sonhos dos anos 80 que vivi intensamente.
Sonhos dos anos 70 que senti como agradável tormento.
Mas estou de caso cheio. Saco cheio. Saco cheio. Beija minha boca, São Paulo. Ouça meus gritos, São Paulo. Não desabe sobre mim, São Paulo. Me deixe desabar em você, São Paulo.
Hoje eu não quero só sonhar.
Quero me perder nesta canção, "Water of Love".
Como Caetano se perdeu em "Terra", na vertigem do cinema.
Posso me deixar Levar por São Paulo porque hoje é domingo de sol.
O trolley bus me larga num lugar que nunca vi.
Urbano relativo, algo entre Filadélfia e Arembepe, Camaçari Bahia.
Arempebe hippie, de Zé Celso, Glauber, Gil e Caetano está num banco de praça.
Bancos de praça são bancos de memória.
Quem não lembra dos bancos da Urca seduzida há milênios pelo Pão de Açúcar?
O banco da praça me conta que o bom de partir é o desejo de voltar.
Arnaldo Dias Baptista, Rita Lee, Titãs, Ricardo Giesta, Antonio Quintella.
"Water of Love" e seu poder de mixar o tempo.
Nunca mais haverá anos 60 porque jamais ousaremos tanto, de novo. Não há nada de novo no novo.
As vitrines da avenida estão cheias de Ferraris, Porsches e até Buicks.
Buicks como os que Nabokov usava para caçar borboletas, que viraram Lolita.
Bugattis como o de Rubens Gerchman, que explode na parede de algum lugar em Ipanema.
São Paulo seduz aos domingos. Seduz e induz a "Water of Love", a minha canção.
Canção que não fiz. Arranquei do coração de Mark Knopfler e implantei no meu. Zerbini.
Num inverno qualquer, anos 80, Saquarema, surfboard, pôr-do-sol laranja e azul.
Será que alguém já perambulou numa metrópole vazia ouvindo "Water of Love"?
Já. O dono da voz, Mark Knopfler, rodou pelo West Side pensando em "Water of Love" para filmar "Going Home". New York City.
Queria me perder mais. Tatuapé, Bexiga, Avenida Paulista.
Mas os táxis não deixam ninguém se perder numa grande metrópole.
Pergunto: o que é isso que escrevo?
"Um texto de outono", responde alguém lá de dentro.
"Yes, I need a little water of love."
E se ninguém entender?
Mas o outono não foi feito para se entender.
Nasceu para ser vivido, celebrado, comido.
Comido como manga-rosa, voraz e salobra como as conas.
So, I´m content.
O CD player de bolso tocava "Water of Love" quando o atirei no mar de Margarita.
Margartina, Paralamas, sinto saudade de Herbert Vianna quando vejo uma estrela do mar.
Herbert, Bi e Barone me arrancaram lágrimas secas num documentário de TV.
HBO, você viu? Tem tempo.
O mar de Margarita ouve "Water of Love", Dire Straits.
E eu me sinto descendo aquelas águas mornas, des-harmônicas.
Como o violão e a percussão existencial da canção que não quer calar.
"Yes, I need a little water of love."
Queria ser poeta, não consigo. Poesia é um perigo.
Poesia não dá abrigo a aventureiros e indolentes.
Como eu, industrial de textos enlatados.
Como os que Herbert e Knopfler não escrevem.
Pode vaiar, leitor, pode vaiar porque eu ligo e sofro.
Sofro como espectador da última cena de "Jules & Jim". Truffaut.
Truffaut que nada nos acordes de "Water of Love", longe da noite americana.
América Latina que seduziu Herbert e Sting, o tal do casamento secreto.
"Nada como o sol", gritou Sting em Margarita, 1986.
E o CD player no fundo dos olhos verdes de Margarita insiste em tocar.
"Water of Love" para as sereias de Netuno, para as filhas de Iemanjá.
Tudo ao mesmo tempo agora, Titãs, elétrico, cáustico. Morte ao acústico!
Ouço o mar sugando os poros da areia, no gozo eterno do entardecer.
São assim os textos de outono, descalços, incoerentes, "Water of Love", livres.
Livres como os anjos, centenas, sentados à nossa volta, fogueira acesa, aurora boreal.
Merecemos a paz antiga e remota das auroras boreais que "Water of Love" evoca.
Evoco anjos indígenas, evoco anjos ocidentais, evoco as Três Marias e o Cruzeiro. Inevitável o banho de orvalho, olhos marejados, tudo aquilo que "Water of Love" seduz.
Ouço todos os mares, como se editados em estúdio digital.
E eles estão aqui, atraídos pelo poder intuitivo de "Water of Love".
Vejo o medo sentado, só, numa pedra distante.
Vejo o medo do medo caído na arrebentação, pedindo punição.
Vejo o medo do medo do medo...ora, "Water of Love" anistia todos os medos.
A coragem é filha do amor sublime e supremo. A coragem é filha da música.
Um satélite corta o orvalho da noite, beira-mar.
Peço que ele arraste "Water of Love" e jogue no ar para o mundo ouvir.
Oiapoque ao Chuí, via Quênia, Angra, Saquarema, Niterói.
O anjo de alumínio nos diz que "Water of Love" já banha o mundo. Internet.
"Ser feliz, o melhor lugar é ser feliz", Caetano.
Caetano zeloso em espalhar "Water of Love" como água benta.
Bonfim, Senhor do Bonfim, como é bom beijar suas mãos.
Ao som de "Water of Love", a canção que reelegi como minha, anos depois.
Agora.