Faz algum tempo. Eu andava por uma pequena rua que não conheço, no miolo de um bairro operário provavelmente o mais quente que já pisei, fora Bangu, no Rio. Eram duas da tarde e, penso, a temperatura ali passava dos 37 graus. Não falo da tal sensação térmica, invenção pequeno-burguesa dos neo-meteorologistas, mas de temperatura mesmo.
Não lembro em que pensava, afundando o pé naquela lama asfáltica desesperadora e opaca, doença industrial que ajudou a enterrar o planeta. Ou alguém duvida que o nosso planeta, outrora azul, foi enterrado vivo pela especulação imobiliária, desmatamento, poluição generalizada, desgovernos, desconsiderações generalizadas?
Eu não estava legal, não. Parei numa espécie de bar que vendia bombril, madeira, pastel, lâmpada, quibe, mariola, café, chumbinho e quando pedi uma H2O Limoneto o balconista me olhou com cara de “que porra é essa?”. Tudo bem. Migrei para uma água sem gás e fiquei contemplando a ausência de paisagem daquele lugar, tomado de telhados de amianto. Pensei em não voltar mais lá, mas havia um compromisso. E se eu rompesse o compromisso? Não faz o meu estilo. Ia tomar um café, mas desisti quando vi o estado do coador, jogado num canto da pia. Paguei a água e saí.
Caminhava pela rua sem árvores, calçada cheia de rombos, buracos, fissuras, cachorros deitados em cantos de muro e, de repente, ouvi um grito conhecido. Conhecido, não, muito conhecido. Preocupado, parei embaixo de uma marquise ligeiramente podre e ouvi o final de “Speak To Me”, faixa que abre o genial e eterno álbum The Dark Side of the Moon, do Pink Floyd, 1973. Na sequência, emendada, depois do grito desesperado, aflito, tomado de agonia, o alívio de “Breathe”.
Não quis saber de onde estava vindo aquela música que caiu como luva em meu estado emocional. No meio do calor comocional, mais mormaço existencial e outros acessórios, engolido por dúvidas, pensamentos caóticos e muitas vezes incoerentes, o grito da música no meio daquela inconveniente lareira psíquica foi a trilha sonora perfeita que o destino (meu chapa) escolheu para sonorizar a minha angústia.
Angústia que clamava pela suavidade de “Breath” que, não sei porque, a pessoa que ouvia abaixou o volume logo nos primeiros acordes. Provavelmente também estava encarando uma crise de histeria muda parecida com a minha e queria mais gritos, mais gritos, algum berro, mas, ao contrário de mim, não quis o conforto, o colo, a bruma, a suavidade de “Breath”.
Continuei andando pela rua que, apesar de pequena, suja, estreita, parecia não acabar. Cruzei com pessoas que pareciam zumbis, banhadas de suor, apáticas, lesadas, balas perdidas quase cambaleando sem terem o que falar, ouvir, olhar. Olhar o que naquela paisagem sem vida? Provavelmente eu também devia estar assim, estático, fora da área de cobertura, olhos secos, boca seca, suor, leve desespero e muita angústia.
Pensei “quando chegar num computador vou escrever alguma coisa agradecendo a pessoa que colocou “Speak To Me” e “Breath” justamente na hora que eu estava passando por aquela picada.” E é o que faço agora. Mais do que um desabafo, esse texto pretende agradecer a anônima pessoa que gritou através do Pink Floyd mas que não quis arrefecer, como eu. Sim, com “Breath” arrefeci. Precisava reiniciar o raciocínio lógico pois entraria em uma reunião de trabalho meia hora depois.
Tive que calar. Pior: tive que dissimular, inventar um alívio inexistente porque em 28 minutos teria que estar encenando um outro papel, de brasileiro gente boa que adora o país tropical, o calor, o suor, e abomina crises existenciais que ele, brasileirinho, chama de coisas de baixo intelecto. Sabem como é? É isso aí.