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Channel: Coluna do LAM
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O marinheiro punk da barca Rio-Niterói numa noite de Luis Buñuel

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Encontrei um conhecido que é saudosista mas não é chato. Raridade. Ele anda com muita saudade da barca Rio-Niterói de antigamente, mais romântica, varrida por uma brisa marinha, alguns boêmios, a presença do profeta Gentileza, blá blá blá blá.
Não comentei com ele para não prolongar a conversa, mas lembro da barcaRio-Niterói dos anos 1970 que era imunda, quente, lenta. A travessia levava quase meia hora e elas pareciam bonitinhas e “vintage” só para os turistas ou por quem não era obrigado a usar. Eu atravessava todos os dias.
No entanto, duas vantagens inegáveis que os atuais catamarãs (que atravessam a baía em nove minutos), muito quentes, porém limpos: belas e gostosas mulheres em profusão e uma varandinha que ficava na popa onde namorávamos ao longo daquela meia hora, usando a bandeira do Brasil que tremulava num pequeno mastro como toalha para higiene íntima.
Havia um marinheiro na madrugada que era grosso, estúpido, amargo, mal humorado, boçal, mas eficiente. A partir de meia noite quando o sono engolia muitos passageiros (sem falar dos bêbados), o marinheiro punk batia com o jornal nos encostos das cadeiras de madeira e gritava “a barca chegou, cambada! Quem não levantar volta para o Rio”.
Um primo meu garante que o marinheiro punk foi transferido para a madrugada depois que, num dia de semana, por volta das três da tarde, os passageiros sentiram que algo errado acontecia. Foi quando o nosso personagem foi para a frente das fileiras de cadeiras do segundo andar e gritou “o leme da barca quebrou, por isso ela está rodando... segura aí!”. Muita gente passou mal e os passageiros tiveram que ser transferidos para outra embarcação em pleno mar.
Alguém denunciou o marinheiro como “fomentador de pânico” e ele foi para a madrugada, barca de passageiros, digamos, profissionais. Ali, o marinheiro podia gritar até que estava afundando e ninguém se importaria.
Um conhecido que adorava andar a pé pelo Rio (por isso ganhou o apelido de Gandhi) voltava de um forró no Méier as 2 e meia da madrugada, de sexta para sábado, quando as barcas funcionavam 24 horas. Eu retornava de um plantão num jornal.
Na estação da Praça 15, aguardando a barca das 3 horas, Gandhi falou comigo, respondi mas ambos estávamos baleados de sono. Suspeito que Gandhi estava levemente biritado. As barcas daqueles horárioseram chamadas de “balsa dos desesperados”, o que fazia sentido. Propus a Gandhi que sentássemos perto um do outro. Chumbado de sono pedi que ele me acordasse quando chegasse a estação de Niterói. Ele foi franco e me disse, voz levemente pastosa que “também estou morto de sono e assim que sentar na barca vou apagar”. Combinamos, então, que cada um dormiria 15 minutos, começando por mim. Ele topou.
Quando a barca deu o terceiro apito anunciando a partida, encostei as pernas na cadeira da frente, cruzei os braços, olhei em volta e apaguei. Tudo muito rápido. Só que Gandhi também dormiu e o marinheiro punk, aquele que acordava todo mundo batendo com o jornal, não estava trabalhando e todos os outros marinheiros sumiram, como era de praxe.
Acordei com a embarcação encostando na estação, dando uns trancos que eram tradicionais. Olhei para o lado, Gandhi roncava e babava. Acordei o meu conhecido e quando saímos da barca e notamos logo que...tínhamos voltado para o Rio.
O marinheiro punk bem que poderia ter trabalhado naquela madrugada, pensei enquanto saia na Praça 15 em direção a uma carrocinha de milho verde que iria estraçalhar antes de embarcar de novo tentando voltar para Niterói.
- Parece “O Anjo Exterminador”, de Buñuel, comentei com Gandhi que sequer respondeu.
Provavelmente não sabia do que se tratava, mas quer saber, ele tinha razão: tínhamos que voltar para Niterói, uma obsessão que tomou conta também dos personagens do filme de Buñuel, pessoas ricas que se veem presas numa das salas de uma mansão após um jantar formal. Não há nada físico que os impeça de sair, porém algo os faz refém de portas e grades imaginárias.
Para evitar problemas, duas decisões: a) subi para o segundo andar da barca e fui para a varandinha da proa, de cara para o vento da baía. Impossível dormir em pé com o vento na cara; b) me distanciei de Gandhi porque cismei ele estava mesmo bebum e que o seu estado emocional contaminava.
Cheguei em casa, tomei um banho, bebi um café e fui para a cama. Liguei o rádio baixinho, sintonizado na Eldo Pop FM de Big Boy e tocava a banda alemã Nektar com“A Tab in the Ocean”. Com certeza não conseguiria dormir. Quem gosta de música boa não dorme com uma dessas. Ou então é blefe. Não gosta nem de música, nem de cama, mas isso é outro assunto, para outra hora. Foi o que pensei, desligando o rádio.

Off.

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