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Channel: Coluna do LAM
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Sim, não, sim, não, sim, não sim, não... necessária incoerência

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Um dia desses me chamaram de incoerente e imediatamente pensei num poste. O poste, coerente, teimoso, que quando venta tomba, ao contrário dos coqueiros que envergam, roçam no chão mas quando passa o vento a maioria permanece de pé.

O Homem só atingirá a plena maturidade quando aprender a conviver com a incoerência. Em muitas situações, incoerência é gol a favor e não contra. Cobrar coerência radical do ser humano é o mesmo que tentar convencer cobra a mugir.

Há tempos, numa farmácia, encontrei um cara que havia me dito, anos antes, que nunca usaria camisinha. Mas estava lá, escolhendo, na dúvida entre lubrificadas, perfumadas, coloridas. Disse a ele que o problema da camisinha não está em quem fabrica, mas em quem coloca. O tal conhecido veio cheio de explicações, como se tivesse cometido um crime ao praticar a incoerência, comprando camisinha depois de anos pregando que jamais iria vestir uma. Tolice.

Quando James Bond disse “nunca diga nunca mais” caminhava mais ou menos pela mesma picada. Todo mundo disse que jamais faria um monte de coisas que acabaram FAZENDO. Recentemente, percebi que sou uma das figuras mais incoerentes que conheço. E daí? Qual é o problema? Em muitas situações, incoerência talvez seja até virtude. Quem sabe? Não significa voltar atrás. 
Representa reavaliação, revisão, enfim, algo ligado ao prefixo re e não ré.

Na última semana do inverno do ano passado (estação que mais gosto) achei que estava assando o saco da humanidade. Andava meio tórrido, meio lancinante e áspero. Fiz vítimas preciosas e, numa segunda-feira, chuvosa e fria, comecei a trabalhar as 7 da manhã e só parei as 2 da madrugada. Dormi, acordei e fiquei na toca. Em seguida cometi outra incoerência: fui ao supermercado fazer compras. Eu que já tinha jurado que nunca mais pisaria naquela masmorra de soja, fubá e cebola, mas estava lá, carrinho na fila do caixa 5.

Apesar de tudo notamos que o povo, mesmo incoerente, cobra coerência. Exemplo: certa vez peguei um táxi, um Santana. O taxista disse, logo que entrei, que estava louco para trocar de carro, que estava achando aquele uma porcaria. Elogiei o conforto, a economia, resistência do bravo Santana. No final da corrida, o taxista não só havia desistido detonar o carro como começou a fazer declarações de amor ao Santana. E finalizou: “hoje estou de cabeça quente”. Incoerência? Sim, mas qual é o problema? O que ele não sabe é que minutos depois de descer do táxi eu refleti constatei que Santana era um péssimo carro. Era porque deixou de ser feito em 2005. Bancos duros, suspensão dura, espaço interno pífio, projeto arcaico e,vejam vocês, eu elogiei.

Na área afetiva as patrulhinas e suas sirenes fazem ronda, marcam em cima. O que mais se ouve é “mas você não disse que o sujeito era um animal, minha filha? Como é que voltou para ele?” Não existe oceano de incoerências mais profundo do que o coração, essa coisa linda que carregamos na carcaça que é um verdadeiro porrete na face estranha e esverdeada da lógica. É o tal ditado: penso, logo pisso, ou penso. Aí alguém diz que não devemos satisfações a ninguém. Mentira. A incoerência, por mais sutil que seja, provoca um mal estar pois, queiramos ou não, vivemos numa tribo. E a tribo cobra satisfações que, mesmo inconscientemente, nos sentimos na obrigação de dar.

Alceu Valença gravou um clássico da música brasileira lá atrás, em 1977, chamado “Agalopado” onde logo na abertura escancara: “pois eu sou o porta-voz da incoerência”. Alceu é sensacional e desde que ouvi essa canção pela primeira vez achei incrível a coragem dessa confissão.

Será que a dinâmica existencial passa pela incoerência? Caso contrário como é ser dinâmico e coerente ao mesmo tempo? A coerência seria, em muitos casos, sinônimo de petrificação, de estagnação, de atraso de vida? Picasso era coerente? Não! Jimi Hendrix era coerente? Não! Einstein, Da Vinci, Vinicius de Moraes, Sartre, Mané Garrincha? Não! A incoerência, a incômoda e perturbadora incoerência foi a mais fiel escudeira desses gênios.

Não é pecado ir e depois dizer que vai voltar. Não é pecado voltar para quem juramos nunca mais ver pintada. Não é pecado desfazer e refazer. Não é pecado praticar, lucidamente ou não, esse bicho estranho e maravilhoso chamado incoerência. Por mais coerente que esse finado texto possa ter parecido.


Originalmente publicado em meu livro “Torpedos de Itaipu”. Editora Artware, 1995, do amigo Alberto Magalhães, o Magá.

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