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A cavalgada da Valquíria

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Texto restaurado e reeditado

Nove e meia da manhã, terça-feira. O pequeno caminhão baú estacionou numa recatada rua do Méier, zona norte do Rio de Janeiro. À bordo, coisas. Coisas de um homem que fora expulso da Glória por motivos absolutamente impublicáveis. Funcionário aposentado da falida Sudamtex, depois da também falida Belprato, Qüêncio queria começar uma nova vida.

Suas coisas chegaram antes dele. Qüêncio estava indo de trem. Os homens da transportadora aproveitaram para descer e comer pastéis com cachaça no “Flor do Méier”, lendário botequim que até crônicas de Nelson Rodrigues frequentou. Pelo menos, é o que dizia a lenda.

Quando Qüêncio chegou era quase meio dia. Descarregaram suas coisas e subiram umas oito vezes a escadaria que dava no andar de cima do sobrado que Qüêncio alugou por um bom preço. Ele pagou os 80 reais combinados, os homens foram embora e agora, certo que iria refazer a vida, Qüêncio abriu a janela da sala e respirou fundo, pensando mais fundo ainda: “Ainda bem que não puseram trema no meu nome”. E fechou a janela.

Enquanto arrumava suas coisas, ouvia uma romaria. Foi até a janela e contemplou uma gigantesca fila indiana dobrando a outra rua. Gente, muita gente. Até ônibus de turismo, misturados com vans e táxis ajudavam no rebuliço. O que seria? Qüêncio pôs o chinelo de couro paraguaio e foi lá fora assuntar. Novo no bairro, todos o olhavam de soslaio, desconfiando, o que era natural.

- Boa tarde, que fila é essa? Qüêncio perguntou a um sujeito meio mal humorado.

- É para a Valquíria.

- Quem é Valquíria?

- Valquíria é uma mulher que faz a melhor cavalgada da América Latina. Até turistas argentinos, uruguaios, chilenos e paraguaios vem aqui conhecer.

O homem deu a informação e partiu.

Qüêncio tinha que terminar de arrumar suas coisas. Aproveitou e acendeu um gigantesco baseado. A maconha era seu único vício. Para disfarçar o cheiro, vulgo maresia, vários incensos, espirais de mata-mosquitos Durma Bem e charutos vagabundos. Qüêncio era maconheiro profissional. Arrumou as coisas e, com o colossal baseado quase no fim, sentou-se numa poltrona. “Quem será essa Valquíria? Que cavalgada ela deve fazer?”. Pensou, pensou, pensou e tomado pelos efeitos da maconha, pegou no sono.

Na manhã seguinte, providência número um: ir até “Flor do Méier” e tomar o café da manhã. Uma garrafa de Caracu e três ovos crus. Mais: saber onde morava Valquíria, quanto cobrava, enfim, Qüêncio estava a fim de conferir. No bar, foi direto ao assunto. O dono, espanhol como passaporte boliviano, foi logo avisando que “ela não atende gente do bairro”. Por que?, quis saber Qüêncio. “Sei lá porque”.

- Mas eu cheguei no bairro ontem, Qüêncio afirmou mudando a pontuação de aspas para travessão por mero comodismo.

- Não interessa. Você já é um local, uma minhoca da terra. Não vai ter Valquiria não.

Mas Qüêncio não iria desistir fácil. Foi lá na casa de Valquíria e tocou a campainha. A voz de um gay no interfone parecia abortar a primeira missão: “Valquíria não atende gente do bairro”.

E assim se passaram os dias. Através de um amigo cracker (a versão turbo de hacker) descobriu até o e-mail de Valquíria. “Desejo ardentemente sua cavalgada, minha amada”, escreveu desesperado sem ser respondido. 

Semanas, meses, Qüêncio já tinha perdido sete quilos de tanto se masturbar imaginando como seria a cavalgada de Valquíria, que até ônibus de turismo atraia para o Méier.

Até que um dia, confusão, alarido, desespero no Méier. Valquíria havia partido de madrugada, abandonando todos. Gente chorando nas calçadas, turistas esmurrando muros de chapisco e, no meio da confusão, Qüêncio procurava uma explicação.

Voltou para casa arrasado, como metade da cidade. Para onde teria ido Valquíria e sua cavalgada? Qüencio sentou o computador e viu que um e-mail havia chegado. Assunto: A Cavalgada. Texto – Qüêncio, a Valquíria sou eu, seu bobinho. Adolfo Wagner, gerente do seu banco.



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