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Confissões de um viajante temporal. Por José Eduardo Agualusa, O Globo.

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Amanhã farei 60 anos. Não consigo explicar como aconteceu. Ainda há instantes eu tentava construir uma casinha de madeira nos ramos mais altos de um abacateiro, lá, na minha infância inesgotável. E depois isto! 

O tempo é escorregadio. “Uma ilusão persistente”, afirmou um dia Albert Einstein, exasperado por não conseguir colocá-lo inteiro numa equação. Até hoje, os cientistas lutam com uma definição precisa. De todas as grandezas físicas, o tempo é a mais difícil de definir e compreender. Vivemos, portanto, mergulhados numa entidade cuja natureza profunda ignoramos. 

Contudo, há duas ou três coisas que ao longo de todos estes anos aprendi sobre o tempo. O tipo de evidências poéticas que a ciência ignora: 

1) O tempo dilata com o calor: tardes muito quentes costumam ser vagarosas. Não correm — deixam-se acontecer. 

2) O tempo encolhe à medida que envelhecemos. Um dia não dura o mesmo para mim, ou para os meus filhos. Para mim, os dias são cada vez mais curtos — incluindo as tardes quentes. 

3) Uma das formas de recuperar a consciência temporal que tínhamos em criança, ou seja, de voltar a habitar esses dias extensos, é praticar a infância, rindo com os amigos; brincando com os filhos (ou os netos) ou aprendendo kitesurfe. Ler um bom romance também ajuda. 

4) Avançar no tempo não é o mesmo que envelhecer. Viajar no tempo, como qualquer viagem autêntica, deve ser aventura e aprendizado. Amadurecer é ganhar independência. Envelhecer é perdê-la. 

5) A velhice é contagiosa. A juventude também. Assistir ao espetáculo da juventude rejuvenesce. Por exemplo, enquanto escrevo esta coluna vejo pelas redes sociais milhares de jovens ocupando a Praça da Independência, em Luanda, defendendo uma maior abertura democrática e protestando contra a violência policial e a degradação das condições de vida da maioria da população angolana. Gostaria de estar lá, entre aqueles jovens, sonhando um futuro melhor. Sonhar nunca é inútil. 

6) “Um homem tem a idade da mulher que o ama”, dizia Pablo Picasso, que hoje em dia parece ser mais conhecido pelo seu machismo do que pela sua arte. Caso prefiram, podem alterar a frase para: “Uma pessoa tem a idade daqueles que a amam.” Gosto da ideia. Claro que funciona melhor para homens como Picasso, que foi ficando cada vez mais jovem à medida que atravessava os anos, ou para mulheres como Brigitte Macron. 

Agora as queixas: enquanto avançamos no tempo, vamos ficando a conhecer cada vez melhor o nosso corpo. Infelizmente, pelas piores razões. Aos 20 anos, os meus órgãos internos eram uma vaga suposição. Só comecei a ter a certeza de que existiam quando passaram a reclamar. Lembro-me sempre do meu pai no dia em que festejou 90 anos: “Até aos 80, foi muito fácil”, disse-me. “Era como se nem tivesse um corpo.”

O meu deu-se a conhecer muito mais cedo. Suspeito que quando chegar aos 80 já saberei o nome de todos os ossos dos pés e das mãos. Ou não. O problema é que aquilo que ganho em ossos perco em memória.



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