As últimas 14 horas começaram calmas, nubladas, sem que eu ouvisse o rastilho de pólvora aceso. É que não havia rastilho algum apesar de minhas parcas, anêmicas e eventualmente crepusculares intuições.
Em algum covil do passado (redação de jornal) um desafeto, colega que se tornou amigo, escreveu, em um jornalão, em minha desomenagem, uma porradaria chupando o título da canção dos Beatles. Na época, eu era conhecido, também, como L.A.
Escrevia em um tabloide local combativo, metido, ousado, a palavra certa é folgado, e dei uns cacetes num recém lançado disco do Caetano Veloso, cometendo algumas baixarias juvenis em meu suposto ponto de vista.
O desafeto, que se tornou desafeto quando terminou o tal artigo, disse que eu estava envolto em uma neblina de ignorância e imbecilidade porque o disco do Caetano era genial, banalizando ainda esse conceito que anda tão chulo aqui nos trópicos de baixo. Perái, achava e acho Caertano um gênio.
Eu estava num ponto de ônibus quando alguém passou de bicicleta e gritou “LAM, viu que te meteram a porrada no.......(nome do jornal) hoje?”
Claro, fui até a banca, comprei e li a porradaria de cima a baixo. O cara não assinou, pôs só as iniciais, e, querem saber?, eu já estava meio arrependido de ter escrito o que escrevi sobre o disco porque estava naquelas fases de incoerência aguda que, diz a lenda, acomete muita gente.
E meus amigos se perderam
Nós vamos acabar logo, eles disseram
Agora eles se perderam
Por favor, não demore
Por favor, não demore muito
Por favor, não demore
Ou eu posso estar dormindo
- Harrison-
Fingi que havia ignorado o esbofeteamento público, fingi estar civilizado, adestrado, fingi para mim mesmo que me comportaria como um lorde britânico fumando um morrão de skank em Trenchtown, atracado com uma local sinuosa e morna, como 90% das locais de lá. Aaaahhh, Jamaica. Aaaaahhh, Jamaica, quanta saudade. Pena que não a conheço.
A falta de sorte do missivista travestido de jornalista é que eu estava começando a trabalhar no Pasquim, o jornal mais valente, louco, absurdo, engraçado, lúcido e implacável do país.
Dias depois, esperava o ônibus. De novo. Roteiro tradicional: ônibus – barca – ônibus - rua Saint Roman, Copacabana O Pasquim ficava lá, uma casa enorme, linda, no morro do Pavãozinho.
Bem, isso só mostra
E eu disse a eles para onde ir
Pergunte a um policial na rua
Há tantos para conhecer
Por favor, não demore (não demore)
Por favor, não demore muito (não demore)
Por favor, não demore
Ou eu posso estar dormindo
- Harrison -
Dois andares. Falo da casa do Pasquim. No andar de cima estava Jaguar e seu indefectível mau humor, num salão cheio de pranchetas, papéis no chão, coisas penduradas em luminárias montanhas de livros espalhados, copos de café.
Ele desenhava o primeiro cartum do personagem “A bicha do apocalipse” que, temporariamente, iria suceder o “Chabu, o provocador” que a polícia havia degolado.
Não tinha a menor intimidade com Jaguar, Ziraldo, Ivan Lessa. Paulo Francis, na época, era um ovni para mim e para eles eu não passava de um cabeludo magro cuja existência não tinha a menor importância.
Havia um outro cara cuja função, achava, era levar esporro. Foi com ele que comentei algo do tipo “eu adoraria ser o Jaguar e desenhar uma “bicha do apocalipse” para um sujeito que me sacaneou em Niterói.” E contei a história.
Levamos um susto quando ele, Jaguar, sem tirar os olhos da prancheta ordenou “me dá o nome do filho da puta porque eu preciso aquecer.” Eu disse, sem entender nada e fui escrever o que tinha que escrever.
A saudosa Dona Nelma Quadros, secretária, mãe de santo, amiga, ombro amigo, me chamou depois do almoço e disse “Jaguar deixou para você. Ele foi em casa dormir e volta umas cinco da tarde”. Era um cartum:
“Eu, Maria da Grória, segurar no seu bilú? Nunca! Eu gosto de jogar peteca, neném. Afinal eu sou ... (nome do cara que escreveu que havia um nevoeiro sobre L.A.), a bicha do apocalipse.”
Os traços rudes e primitivos do Jaguar faziam daquela mensagem um tiro de Panzer. Mortal.
Dona Nelma, “olha, ele não assinou o desenho e disse para você não dizer que é dele para não se complicar. Você não se complicar e não ele, entendeu?”.
Entendi.
Agora já passou da minha cama, eu sei
E eu realmente gostaria de ir
Em breve será o romper do dia
Sentado aqui em Blue Jay Way
Por favor, não demore (não demore)
Por favor, não demore muito (não demore)
Por favor, não demore
Ou eu posso estar dormindo
Por favor, não demore
Por favor, não demore muito
Por favor, não demore
Por favor, não demore
Por favor, não demore muito
Por favor, não demore
Por favor, não demore
Por favor, não demore muito
Por favor, não demore
Não demore, não demore
Não demore, não demore
Não demore, não demore
Não demore
- Harrison -
Na noite/madrugada de fechamento do tabloide, o editor saiu para beber e não voltou. Discutiu com uma mulher na Leiteria Brasil e acabou se embebedando no Snoopy, onde quase caiu no mar.
O dono do jornal ligou, passava da meia noite, e Lady Tesão (uma dama que cuidava da área comercial) disse alô e em seguida “ele está sim”.
- Pra você.
“Magrão, você vai fechar o jornal hoje, tá? Fulano passou mal. Capricha e qualquer coisa me liga.”
Caprichei. Pus a bicha do apocalipse na capa e deixei a carta de demissão em cima da mesa do dono do tabloide.
O que eu não previa:
1 – o jornal foi o maior sucesso.
2 – o editor se demitiu porque foi morar em São Tomé das Letras com a mulher do bate boca na Leiteria Brasil.
3 - o dono do jornal me convidou e aceitei ser o editor.
4 – o homenageado, o cara do nevoeiro em L.A., tentou fingir que não viu mas pregaram a capa do tabloide no mural da redação do jornal onde trabalhava.