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"Não quero ver os rastros da minha adolescência pisoteados"

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Julinho Bofetada foi o cara mais tranquilo, pacífico e educado que conheci. Foi na adolescência quando jogávamos bola num campinho nos fundos de uma igreja católica que, numa pausa técnica (briga, dois embolados no chão) apareceu um cara meio sorridente, deu boa tarde, perguntou se ninguém ia separar a briga, alguém disse “qual é meu capa, peru de fora não dá peruada” e o visitante “você tem razão, desculpe”. Sua tranquilidade gerou um certo constrangimento e acabamos separando os dois mamíferos embolados no chão.

Julinho se apresentou a todos, simpático, voz baixa, disse que a família tinha vindo de São Paulo e em determinado momento comentou que “se for possível, gostaria de jogar um pouco, mas se não der fica para outro dia”. Canhão olhou, olhou, olhou e disparou “valeu, Julinho Bofetada”, antagonismo radical que virou apelido e quase nome próprio. Era tudo, menos bofetada. Ele entrou no jogo e foi o melhor. Artilheiro, massacrou com passes precisos, calculados, calmos. Mês seguinte foi o artilheiro do futebol na praia, cuja areia era marcada do tamanho de um campo oficial. Graças a Julinho Bofetada o time venceu o campeonato, ele foi carregado nos ombros, troféu, kit completo.

Ao longo do tempo Julinho se tornou nosso embaixador. Resolvia qualquer problema, desde pancadaria por causa de namorada até visitar a casa de algum enrolado para conversar com os pais. Todos os pais o adoravam. Diplomata, jamais dizia palavrão, não namorava garotas da nossa área (só de mais longe) para não gerar qualquer tipo de conflito. Verdade, o simples fato das garotas o adorarem com olhares abissais, carinha de gemido, nos deixavam loucos de ciúme. Em contrapartida ele resolveu muito namoro engasgado, e seu mantra era “não é bem isso, na vida tudo é uma questão de encaminhamento”.

No colégio também era atração. Chegava, cumprimentava todo mundo, sentava numa carteira quase lá atrás. Sobre a carteira, nada. Nem papel, nem caneta. Ele só olhava fixo para os professores, aprendia tudo e tirava nota máxima. Passava direto todo o ano, mas dava uma força aos colegas em aulas particulares na biblioteca. E nunca tirou onda e nem saiu para tomar cafezinho com professor, com exceção da professora de inglês (sonho de consumo de todo mundo) que, soubemos, ele pegou. Mas nunca disse nada. Seu objetivo era ser diplomata, embaixador, mas para começar tinha que passar no terrível concurso do Instituto Rio Branco. Sumiu da rua por meses se preparando. Tinha uns 17 anos.

Conforme o combinado, em um fim de semana Cabeça de Bagre chegou cedo a rua com a sua Kombi pintada com motivos psicodélicos, e pegou quase todo mundo. Quase todos com suas pranchas de surfe. Cabeça de Bagre seguiu para Itaúna, Saquarema, uma viagem que em geral se faz em uma hora e pouco, mas naquele dia durou quase três horas. O carro foi parado várias vezes pela polícia. Todos cabeludos, mandavam mostrar documentos, levávamos geral, inspecionavam a Kombi, Cabeça de Bagre suando de calor e raiva, enquanto Julinho Bofetada resolvia as coisas.

Em Itaúna, uma maravilha. Eu não surfava porque não tinha paciência para aprender mas pegava umas ondinhas de peito. Julinho Bofetada passou por mim remando sua prancha lá para atrás da laje. Mar grosso, muito grosso, mas com ondas espetaculares. Todos se dando bem, felizes, inclusive Julinho Bofetada que era um surfista mediando. A tarde, mar mais virado ainda, muitos deitados na areia e outros surfando. Anoiteceu e Julinho Bofetada sumiu. Vários caíram no mar escuro e, sorte, o acharam na laje, meio tonto. Bateu a cabeça, mas não foi forte. Pusemos na Kombi e levamos para um hospital em Araruama para ver se estava tudo OK.

Julinho Bofetada nunca mais foi o mesmo. Parou de sorrir, perdeu o ano no colégio, desistiu do Rio Branco, virou cachaceiro, terminou um namoro, ficava dias trancado no quarto, só falava palavrão. Os pais o levaram a São Paulo, vários exames de alta tecnologia, imagens e nada. O diagnóstico foi de distúrbio neuro vegetativo, comum nos anos 1970.

Ele foi medicado, mas o nosso Julinho Bofetada não era mais Julinho Bofetada. Só não perdeu a educação e a elegância. A família voltou a morar em São Paulo e o que soubemos é que ele foi internado numa clínica de dependentes químicos perto de Campos de Jordão. Nunca mais tivemos notícias e ficamos derrubados achando que tudo aconteceu porque o levamos para surfar em Itaúna. Flagelo da culpa.

Ano passado, peguei um ônibus para a Gávea e quando caminhava no corredor para achar um lugar, um cara me pegou pelo braço. Era ele, Julinho Bofetada. O lugar ao lado dele estava vago, sentei, temperatura ótima, 22 graus. Que beleza de ar condicionado.

Comecei a falar “que bom te ver, Julinho...”, ele emendou rindo “Bofetada, forever” e, em menos de 5 minutos, tive a certeza de que Julinho Bofetada voltou a ser o que era antes da laje de Itaúna. Bem humorado, disse que era professor de Direto Internacional numa universidade de São Paulo e só não foi para a diplomacia por causa da política. Casado, tinha um casal de filhos já adultos e comentou que “não tenho do que reclamar”. Perguntei se ele tinha resolvido o distúrbio neuro vegetativo e ele respondeu que só em 1987. “A descoberta e lançamento comercial da fluoxetina e do alprazolam salvou muita gente, inclusive a mim.”

Papo, muito papo, acabamos chutando o balde, descemos do ônibus e sentamos num bar no Baixo Gávea. Ele perguntou pelo pessoal da rua, eu disse que todo mundo se desconectou porque Niterói foi desumanizada com a inauguração da ponte, a especulação imobiliária, a invasão de gente, tudo isso dilacerou nossas amizades. Muitos fugiram da cidade, outros se mudaram para longe.

Perguntei se ele tinha tempo para darmos um pulo até lá e, como sempre um gentlemen, agradeceu e disse que “não quero ver a cidade assim. Já haviam me dito. Até teria tempo porque só vou voltar para São Paulo daqui a três dias. Mas não quero ver os rastros da minha adolescência pisoteados.”. Nós dois estávamos emocionados. Engatei em outros assuntos.

“Rapá, um dia desses fui contemplado com a boa vontade de um sujeito que não conhecia. Podem até dizer que “ele não fez mais do que obrigação, trabalha para isso”, mas não é bem assim. Vivemos um momento estranho onde imperam a patada, a grosseria, o mau humor e vizinhos de porta da nefasta má vontade. Quando achamos um funcionário de uma empresa regido pela boa vontade muitas vezes impressiona.”

Julinho Bofetada emendou: “Muitas empresas botam a culpa na crise e aumentam seus lucros investindo em mão de obra barata, desqualificada. Botam para trabalhar justamente no atendimento ao público que, em função de tudo o que está aí, também não cheira a Leite de Rosas.”

Eu: “aí vira o maior bala com bala. No entanto, por mais que seja desqualificada, incompetente e mal paga, uma pessoa de boa vontade tenta fazer o possível, enquanto o seu oposto despeja o impossível na nossa cara. Ontem um amigo contou que estava falando com o banco pelo telefone e uma mulher, grosseira, inchada de má vontade, disse quase soletrando que não havia como resolver o assunto e desligou na cara dele. Nesse nível. Ele ligou de novo e quem atendeu não só pediu desculpas como resolveu o problema.”

Julinho Bofetada: “Muitas empresas e instituições pedem que a gente dê notas pela qualidade do atendimento prestado pelo funcionário. Apesar de desconfiar que ninguém vai ouvir a minha nota quando ligo. Por exemplo, para a operadora de telefone dou nota máxima quando sou bem atendido e nenhuma nota quando não. Simplesmente desligo. Vai que um zero se junta a outros e a pessoa, mesmo podre de humor, é demitida?”

Eu: “Reconhecer a boa vontade é mais importante do que bombardear o oposto. Quem sabe elogiando, estimulando, reconhecendo podemos sinalizar que ser cordial é o melhor caminho?”.

Julinho Bofetada: “Na vida, tudo é uma questão de encaminhamento”.

Ele pegou um táxi, eu um Uber e seguimos nossos rumos, certo de iremos nos rever em São Paulo, em breve. Ele prefere lá. Eu também.



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