Sempre fui muito apaixonado por automóveis e na minha adolescência o Brasil produzia os “monstros” com motor V8, rápidos, desafiadores irresponsáveis. Eu sonhava com o americano Mustang (Ford) e também o seu arquirrival Camaro (Chevrolet). No Brasil meu delírio maior era ter um Dodge Charter R/T, o que acabou acontecendo.
No início deste século 21, eu vinha por uma avenida e na frente de uma agência ele me chamou atenção. Era um Dodge Charger R/T bege com capota marrom (semelhante ao da foto) com uma inscrição no parabrisa: “Carro de colecionador”.
Dei a volta no quarteirão e fui ver o Charger. Inteirinho, ano 1978, interior bege e marrom, motor LA 318 fabricado, acho, no Canadá. Foi paixão explosiva e imediata, daquelas que nos tornam precipitados e levemente imbecis. Por isso, dei uma de racional e disse ao vendedor que voltaria no dia seguinte.
De manhã, estava lá. Fui com a minha namorada porque tinha o saudável hábito de pedir a sua opinião, e mulher tem a mais aguçada intuição entre todos os mamíferos. O dono da agência pôs o carro na rua e fiz um pequeno test drive com aquele trovão. De tanto ler, conhecia todos os detalhes, prós e contras. Prós, o motor, acabamento do interior, design. Contra: praticamente não tinha freio (eram freios a lona nas quatro rodas), bebia mais do que várias gambás juntos (na cidade uns 4 km/litro) e a porta quando batia podia levar dúzias de dedos dos passageiros do banco de trás, caso apoiassem a mão na moldura da janela.
Perguntei a namorada “e aí, gostou?”, ela concentrada respondeu com um desanimado “é, né?”. E argumentou com dados reais, objetivos, coisas que os sonhadores não pensam. Fez perguntas básicas: “onde você vai parar esse caro que tem cinco metros de comprimento? Será que é fácil achar peças? E mecânicos? Não acha que está caro demais?”. Eu, mudo, ouvi e depois de uns minutos dei razão a ela e fomos embora.
Ela percebeu que eu não conseguia dormir. Parecia um limpador de parabrisa na cama, levantando para beber água, sabe como? Ela atirou no cerne da questão: “não para de pensar no carro, não é?”. Confessei que não parava mesmo não, ela acendeu o abajur e me convenceu a comprar o Dodge. “Você sempre falou desse carro, uma vez em São Paulo quase foi atropelado atravessando uma rua para ver um...ah, se não der pé, vende”.
No dia seguinte, pou! Levei o Dodge, da agência direto para uma oficina de canos silenciosos. Pus dois silenciosos esportivos, um em cada saída de descarga e saí de lá parecendo o cometa Halley, com o corpo todo arrepiado com o rosnado do motor, lembrando de Steve McQueen em “Bullitt”. O vruuuuuuum daquele motor com o escapamento esportivo era maravilhoso, mas só tinha um problema: chamava a atenção. E eu não gosto de chamar a atenção.
Como era raridade, deixava o Charger na garagem (todo mundo olhava) e meia noite saia para dar uma volta pequena. E num desses passeios, numa avenida absolutamente deserta, acelerei forte, o bicho urrou, decolou e no final da reta freei mas não tinha freio. Quente demais. Reduzi de quarta para a segunda e primeira marchas tentando controlar aquele animal quando (ufa!) consegui parar. Milagre, tenho certeza, pois um muro me esperava.
No dia seguinte, banho de óleo na garagem. Levei num mecânico de motor V8 que me indicaram, ele pôs o Charger no elevador, olhou e deu o veredicto: estouraram seis buchas. Perguntei “buchas”? Ele me levou até debaixo do carro e eram pequenos artefatos de borracha tampando componentes do motor. Perguntei se ele tinha para vender e, na sinceridade, proferiu “só o Jorge Dodge”. Fica onde?, indaguei. “Na favela da Maré. Compra as buchas e traz para mim que ponho. São baratas, aproveita e compra as 13 logo porque vivem estourando. Mas vá com esse carro para o pessoal saber que você vai no Jorge Dodge, entendeu?”. Entendi.
Trabalhei até umas 9 da noite, depois fui para a casa da namorada (morava mais lá do que na minha, até Zappa, meu cachorro, ficava lá), falando como quem não quer nada “amanhã de manhã vou dar um pulinho na Maré”. Ela deu outro tiro certeiro: “o carro, né?”. Respondi “É, coisa à toa, mas só vende lá”.
De manhã rolou um princípio de incêndio entre nós. Ela queria ir comigo de qualquer maneira e eu, paternal, argumentava “não precisa, não precisa...”, mas ela foi e eu gostei porque éramos companheiros pra caramba e ela craque em mapas. Sim, usamos um mapa da Quatro Rodas para achar o lugar.
Entrei na Maré numa boa, bem devagar, muito devagar, perguntando onde era o “Jorge Doge” e as pessoas informavam. Quinze minutos depois, cheguei. Escrito a mão na quase fachada estava lá “Jorge Dodge bar, prato feito, peças de carros e fiado só no vizinho” (a pontuação é minha).
Me apresentei, ele muito gente boa elogiou “que caranga, hein meu chapa”, apresentei a namorada, ele cumprimentou “prazer, madame” e falei das buchas. Ele disse “isso é assim mesmo, senta aí no bar que vou lá buscar”. Sentamos. Uma Kombi parou com dois ou três caixotes, um senhor bem bêbado comentou “esses são os fornecedores de peças de carro...hahaha...só porque sou velho e bêbado acham que sou babaca.” Abelhudo mandei um “por que?”, e o bluesman (parecia mesmo) “ora, meu filho, é tudo roubado.” Minha namorada riu, mas não foi de nervoso. Depois me disse que riu da cara que fiz.
Jorge Dodge fez uma promoção boa, 26 buchas, hoje cada uma custaria 5 reais, ele fez por 3. Levei. Entramos no carro e fiz um verdadeiro rali para sair do lugar. Queria entregar ao mecânico e fazer logo o serviço porque levava latas de óleo na mala do carro. Motor vazando tinha que completar de óleo sempre.
Deixamos na oficina e saímos. Fomos trabalhar. No dia seguinte carro OK, mão de obra uma facada, mas fazer o que? Dois dias depois, sábado, íamos a um leilão de arte em Botafogo com amigos. “Que tal irmos de Dodge?”, a namorada respondeu que tudo bem. Fomos.
De fato, o carro parecia uma caravela andando pelas ruas e teve a delicadeza de ferver o motor no Túnel Santa Bárbara. Barulho ensurdecedor dos carros passando, um outro usuário chamou o reboque, confusão, a namorada se recusou a ir no carro dos amigos queria ficar e ficou.
O reboque deixou naquele recuo na boca do túnel em Laranjeiras e eu fiquei de voltar segunda-feira para buscar. “Tem que ser hoje, não pode dormir carro aqui.”, disse o funcionário. Depois do leilão, voltamos para lá, chamei um reboque particular (carro dessa idade não tem seguro), morri numa grana e deixei nas imediações da oficina de V-8. Ninguém rouba.
Segunda-feira fui lá. Empurraram o carro até a porta da oficina. “Estourou uma mangueira do radiador”, disse o dono, “e pelo visto o burrinho de freio também”. Pedi para trocar a mangueira (ufa!, ele tinha uma lá) e quando ficou pronto levei o carro para a garagem e abandonei. Desilusão, decepção, dor de corno.
Dois meses depois anunciei, pedindo um pouco mais do que paguei por ele para compensar as despesas. Um cara de São Paulo ligou e fechamos o negócio, sem choro. Dois dias depois, conforme o combinado, ele apareceu num Alfa Romeo 156 seguida de um caminhão reboque. Comentei “coisa linda o seu carro” e ele respondeu “mas é uma bosta”, e riu. Ele era colecionador de carros, perguntou logo “quantas buchas do motor trocou?”, e riu; “ferveu muito?” riu de novo. “Vou comprar porque relíquia não pode andar muito, entende? Tem que ficar quieta na garagem, sair para ir a um encontro de colecionadores, leilão, alugar para novela, cinema, tudo perto. É um ancião, entende? Vai para São Paulo de reboque porque não aguenta, entende?”.
Quando vi o Dodge ir embora em cima do reboque senti...posso falar?...senti um enorme alívio. Imediatamente liguei para a namorada, quase gritei “vendi o Dodge” e a noite fomos comemorar.