Minha paixão pela literatura é “pré-colombiana”, a ponto de, apesar de garoto vadio, caçador de pipas, empregadas domésticas e ondas que surfava de peito lá na Itapuca (Google, por favor), pedir a minha mãe para ter aulas de literatura fora do colégio. Algo como Tiradentes ir a uma loja e comprar dúzias de cordas. Assim, comecei a ter aulas particulares com a saudosíssima professora Jacyra Pires de Mello que me explicou Machado de Assis, Manoel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade, Nelson Rodrigues e, é lógico, me deu muito, mas muito esporro.
Em tempo: em 1974 comecei a estagiar (depois me tornei repórter) no Departamento de Jornalismo da Rádio Jornal do Brasil, que ficava no mesmo andar (sexto) da Redação do JB. Um dia, passando pela Redação, um senhor estava na fila da máquina de café, exatamente na minha frente. Era Carlos Drummond de Andrade. Ele pegou o café dele, em seguida olhou para mim e perguntou “com açucar?”. Respondi, “sim”, branco de emoção.
Num outro dia, conversando com um colega na Redação, tirávamos uma dúvida de um texto. Uma voz atrás de nós trovejou: “tirem mesmo suas dúvidas para não espalharem imbecilidades pelo país”. Era Nelson Rodrigues!
Drummond: "quer com açúcar?". Fotaço do amigo Rogério Reis.
Paradoxo. Matava aulas no colégio mas ia a casa de dona Jacyra, na rua Moreira Cesar em Icaraí, com o maior prazer. A literatura me seduzia cada vez mais, enquanto que Darlene (vulgo Leninha), uma babá que trabalhava no andar térreo da minha professora, começou a disparar sorrisos de soslaio. Acabei encapando a moça, dona de uma bela e rica mata atlântica, que tornou-se ex-moça e minha amante, dia sim outro também, entre as árvores do Campo de São Bento. Mas esse é outro assunto que não interessa a ninguém.
O coreto virou viveiro de pombas-rolas (em todos os sentidos). Hoje é, de novo, coreto.
Leninha...que saudade.
Mestre Zéfiro.
Dona Jacyra mandou que eu escrevesse uma redação em quatro páginas de papel almaço (será que ainda existe?) em uma semana. Dois dias depois, cheguei com a redação pronta. Tinha me encontrado com Leninha na noite anterior e, como chovia, fomos copular num viveiro de pombas-rolas (aves) que existia onde foi (e voltou a ser) o coreto do Campo. De noviça rebelde e virgem, Leninha tornou-se gulosa, voraz e sádica, chicoteando minhas costas com um pedaço de caniço enquanto gemia e até gritava eventualmente. Confesso que gostava daquelas sessões de chicotes sustentáveis.
Lembro que minha redação para Dona Jacyra começava assim:
“A carrapeta da primata voadora caiu na minha mão, como um torpe balão de São João de bucha apagada, brocha, sem sentido. Ou a vida brocha faz sentido? Faz? Então atire a primeira glande”.
Dona Jacyra dava aulas numa mesa de centro na sala de jantar de seu apartamento. Tinha mais de 80 anos e uma lucidez invejável. Ela sempre mantinha à mão um matador de moscas, daqueles que tem um cabo fino.
Matamoscas.
No dia em que apresentei a redação ela pediu que eu abrisse a mão e, vapt!, mandou uma sarrafada. De leve, claro, mas doeu. Não a sarrafada em si, mas o fato dela ter me censurado, ter rejeitado meu texto, enfim, foi uma decepção logo pisoteada pelo renascimento de minha admiração. Ela bateu e disse:
- Se você se render, nunca mais te darei aulas. Esse é seu estilo! Mantenha-se neste caminho. Estou batendo na sua mão para você não esquecer.
Eles me mostraram os deltas. Todos os deltas.
E não esqueci. Desde então (eu tinha 13 anos) nunca mais abandonei o acostamento do sucesso. Se já namorava a literatura beat, com o aval de dona Jacyra mergulhei de cabeça. Fui fundo nos textos que os caras da Tropicália produziam e sugeriam, lia Anais Nin, Henry Miller, Luiz Carlos Maciel, e aos 15 anos, sei lá porque, tornei-me cronista de jornais em Niterói onde sempre escrevi meio torto, meio fora da estrada, totalmente, digamos, maldito.
Por isso, me orgulho do programa Café Paris, fazemos, eu e o Luiz Augusto Erthal, mais a Cristina Lebre, Catherine Beranger e, em breve, seu Antonio Gomes da livraria Gutenberg. Apresentamos na TV O Flu (canal 12 da operadora SIM, Niterói e São Gonçalo) e para o mundo todo, a qualquer hora, em www.programacafeparis.com.br .
O Café Paris é o limite do acostamento e, talvez por isso, esteja atraindo uma massa enorme de pessoas antenadas, sacadoras, novidadeiras e muito sagazes. Que é o público mais interessante que existe, em minha boçal opinião.
Quanto ao resto da redação que entreguei a dona Jacyra, vou lembrar. Vou lembrar e reproduzir aqui no blog.