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“Ontem já era, amanhã ninguém sabe, hoje é o que interessa”

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Parece que não está no nosso cardápio viver um dia de cada vez. Nos anos 70, garoto que amava Beatles, The Who e Rolling Stones, já havia ingressado no Mentes Caóticas Futebol Clube, onde acabei me tornando sócio vitalício.

Comecei a fazer psicanálise existencialista com um cara legal pra cacete, super competente e relativamente louco de quem tenho saudade. Morreu há tempos, morte lacaniana: no carnaval, caiu de um caminhão de bloco fantasiado de marimbondo e morreu no meio da rua. O povo parou e chorou compulsivamente.

Me agarrei a análise existencialista porque sua linha de raciocínio era um torpedo contra as mentas caóticas: “ontem já era, amanhã ninguém sabe, hoje é o que interessa”. E o trabalho estava dando resultado.

Sofria do que o povão chama de “vertigem de altura” e uma vez, já embriagado de Albert Camus que o analista recomendava, decidi dar o primeiro passo. Subi na Pedra da Baleia na Prainha de Piratininga (Niterói) e cheguei na beirada. Gelei. Falta de ar, tonteira, mal estar, sintomas típicos da tal vertigem/crise de ansiedade. Foi quando acionei “ontem já era, amanhã ninguém sabe, hoje é o que interessa” e me atirei lá de cima. Caí no mar e me surpreendi de estar vivo. Subi na Pedra de novo, o pânico foi baixando e já quase sem medo algum atingi 15 mergulhos seguidos. E quem conhece sabe que aquilo é alto pra caramba. Quando narrei o fato, o analista levantou de sua cadeira e me cumprimentou.

Alguns dias depois, peguei um ônibus de manhã cedo. O problema não era o ônibus e sim o de manhã cedo. Mas, tinha que trabalhar. O ônibus muito acima de sua lotação e caindo aos pedaços, entrou na ponte Rio-Niterói com gente quase pendurada na porta de entrada, bancos com três, quatro passageiros, um amontoado imóvel no corredor, bunda com bunda generalizado. O motorista acelerou fundo e quando começou a descer o vão central, pisou até a tábua.

O velho veículo sacolejou, cheiro de queimado (calculei que estava a 100 k/h com mais de 100 à bordo) começou a dar sinais de capotagem e acho que pelo meu semblante tranquilo, totalmente foda-se, chamei a atenção de um sujeito que, como todo mundo, gritava e quase chorava enquanto um outro tentava se mover entre os passageiros em pé para dar um jeito no motorista que, de fato, havia pirado. “Você não vai fazer nada?”, ele perguntou, lábios trêmulos. Pensei “ontem já era, amanhã ninguém sabe, hoje é o que interessa” e respondo, sinceramente na maior tranquilidade, “o máximo que pode acontecer é morrer todo mundo”, e permaneci de pé, calado.

Na grande reta da ponte o motor pegou fogo e o ônibus foi obrigado a parar. Surraram o motorista. Alguns queriam jogá-lo no mar. Nada fiz. Encostei na mureta da ponte e aguardei o resgate, o que acabou acontecendo. Depois fiz uma boa reportagem sobre o episódio.

Uma noite, cheguei para a minha consulta e o analista comunicou, educadamente que “decidi não usar mais o Existencialismo como ferramenta terapêutica. Farei outras incursões, a começar por retomar Freud”. Quis saber por que, mas não perguntei. Nos despedimos e fui embora, cabisbaixo, mas com o mantra na ponta da língua:“ontem já era, amanhã ninguém sabe, hoje é o que interessa”.
Voltei a Pedra da Baleia para me jogar e novo e a ansiedade já estava de volta. Na base do dane-se me atirei outras 15 vezes. Na mesma época terminei um namoro longo e burocrático, cheio de planos e projetos. Como deixei de ser um homem de planos e projetos seria palhaçada manter vínculos com fatos cheios de planos e projetos sendo existencialista, entendeu?

Estagiário, início de carreira, estava no ônibus C-5 que levava a Praça Mauá onde ficava o meu estágio. Uma gostosa mulher ficou olhando para mim e, como Clint Eastwood em “O Estranho sem Nome”* (1973) levantei, fui até ela e falei “me encontre as 8 da noite em frente a Casa Piano”.

Fui para o estágio e na saída, oito da noite, fui andando da Praça Mauá até a Casa Piano, início da avenida rio Branco. Ela estava lá, me esperando. Eu disse que ela podia me chamar de Clint. Caminhamos calados e nos enfurnamos numa daquelas pensões nas ladeiras do entorno da Mauá. Gostosa mulher. Notei que, ao tirar a roupa, ela colocou um revólver na mesinha de cabeceira.“Ontem já era, amanhã ninguém sabe, hoje é o que interessa”, acionei no ato. Meu único receio era dela me matar antes de me comer. Felizmente não aconteceu. Nem antes, nem depois. Nos tornamos amantes, com direito a amigas dela em nossas esbórnias em noites infinitas nos muquifos da Praça Mauá.

Até o dia em que ela sumiu. Faltou ao encontro. Eu, uma prima dela e uma amiga esperávamos perto da Sacadura Cabral. Ela não apareceu. Nós três fomos para um pardieiro ali perto, mas não foi a mesma coisa, tipo “naquela cama está faltando ela e a saudade dela está doendo em mim”.

Pus a culpa nos planos, agendas. “Se não tivéssemos marcado nada, ela não teria sumido”, eu disse as duas, que discordaram. Disseram que algo grave podia ter acontecido já ela andava arnada. Temiam que em caso de crime nós acabássemos envolvidos. “Ontem já era, amanhã ninguém sabe, hoje é o que interessa”, e daí?, perguntei. “Se formos em cana, vamos em cana. Se formos julgados seremos condenados porque somos duros e juiz não gosta de duros.”

Sinto falta da análise existencialista porque já fui bom em chutar baldes. Como não esperava nada de nada, minha ansiedade chegou a um nível invejavelmente baixo. Se alguém propunha “vamos fazer um jornal?”, eu respondia calmamente “vamos, quando estiver pronto é só chamar”. Em outras palavras, bani planos e projetos num país descaralhado e assim me dei muito bem. Me dei não, me dou, porque continuo assim. Se um dia alguém me propuser abrir uma granja de codornas (já tive uma) eu topo. É só aparecer com as codornas, com o local, o equipamento e vamos nessa. Mas ideias, sonhos, projetos? Papos de botequim.


* Chegou a Netflix, versão restaurada.

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